05 junho, 2010

As desventuras de Cheshire no país das maravilhas.

O Gato de Carroll mostra-se à menina como um companheiro nos momentos em que ela precisa de uma resposta sobre o que fazer. É um dos poucos personagens com quem ela consegue manter um diálogo mais brando e também o único que a explica o porquê de determinadas coisas. É ele, por exemplo, quem diz a Alice que todos, naquela terra, são loucos e que o motivo de ela estar lá seria porque, provavelmente, teria sua própria dose de loucura. Ele é, pois, a criatura sábia que conduz e aconselha Alice em sua aventura, uma espécie de Grilo Falante, uma consciência figurativa. E é, ainda, o pensamento científico da narrativa porque comprova o que fala, embora mantenha sempre sempre uma linha tênue entre a genialidade e a loucura. Teria sido o objetivo de Carroll criticar a ciência?

De acordo com a História oficial, a expressão “sorrir como um Gato de Cheshire” nasceu muito antes de ser imortalizada pelo escritor. Segundo Martin Gardner, em seu “The Annotated Alice”, existem duas hipóteses para o surgimento desta frase. A primeira defende a idéia de que sua origem se deu através do costume de um pintor de escudos e brasões de retratar, no interior de antigas hospedarias e albergues, leões sorrindo; este pintor seria muito famoso na região de Cheshire – lugar, inclusive, onde o próprio Carroll nasceu–. A segunda hipótese leva em conta um outra origem completamente diversa. Defendida também pelo “Brewer’s Dictionary of Phrase and Fable”, ela nos diz que Cheshire era uma região provavelmente dominada pelo clero, que vivia sob jurisdição quase Real de uma espécie de paladino ou clérigo; em certa ocasião, para divertir-se este governante teve a idéia de mandar que moldassem um queijo na forma de um gato sorrindo. Este era o famoso queijo de Cheshire e, a partir desta data, “sorrir como um Gato de Cheshire” tornou-se uma frase bastante comum na Inglaterra e passou a caracterizar a imagem de um largo sorriso de uma ponta à outra da cabeça. Gardner, a esta altura, cita o Dr. Phyllis Greenace, em um de seus estudos psico-analíticos sobre a origem das metáforas do criador de Alice. Referindo-se ao queijo de Cheshire, o Dr. Greenace diz: “Esta (hipóstese) tem um peculiar apelo Carrolliano, pois provoca a fantasia de que o gato de queijo pode comer o rato que iria come-lo.”.

A partir daí, podemos identificar o jogo de palavras e idéias de que se utiliza Lewis Carroll em sua obra. Em um determinado momento, nota-se o diálogo entre Alice e a Duquesa:

“Por favor, poderia me dizer (...) por que é que seu gato sorri desse jeito?”

“Ora, é um gato de Cheshire, (...) e é por isso.”

“Não sabia que todos os gatos de Cheshire sempre sorriam, na verdade, eu não sabia sequer que um gato pode sorrir.”

“Todos eles podem, (...) e a maioria deles o faz.”

Um artigo escrito por John H. Lienhard para a página na internet “Engines of our ingenuity” define bem esta comparação que tentamos fazer:



“Os físicos agonizam enquanto o Gato de Cheshire senta e sorri.



Eles tentam escrever funções de onda para os gatos e a radiação gama. Mas eles concluem coisas patéticas: talvez o gato na caixa fechada esteja tanto vivo quanto morto, ao mesmo tempo. Steven Hawking, o físico que escreve sobre buracos negros da sua cadeira-de-rodas, joga suas mãos para os céus e chora: ‘Quando eu ouço sobre o Gato de Schrödinger, eu tento procurar minha arma.’

“(...) Isto nos leva a pensar que os cientistas estão realmente mais interligados com o mundo que eles observam do que eles próprios gostariam de estar.”

O mesmo artigo ainda nos traz a impressão do filósofo Abner Shimony:



“Sistemas físicos não podem ser ditos como tendo propriedades definidas independentemente das nossas observações.”



Com efeito, este é um ponto relevante das experimentações de Erwin Schrödinger. Deste apontamento, portanto, podemos tirar a síntese de toda esta proposição, ou seja, cada sistema físico possui propriedades definidas de acordo com o seu observador, isto é, para cada observação, temos um resultado diferente. Por conseguinte, o observador não, simplesmente, interage com o experimento, ele o define; formula o seu próprio resultado.

Em uma adaptação de “The Nursery Alice”, versão de Carroll direcionada às crianças de menos idade, um curioso contador que inexiste no original “Alice’s adventures in Wonderland” e que, provavelmente, seria o próprio escritor, narra a história sob a forma de um diálogo entre ele e uma criança. Nesta versão, uma passagem inusitada:





“Verdade que Alice está muito formal, com a cabeça levantada e as mãos para trás, como se fora recitar uma lição para o Gato?

“(...) Completamente só, sozinha! Pobre Alice! Nem um Bebê, nem sequer um Lacaio para fazer-lhe companhia!

“Assim, eu posso crer que se alegrou muitíssimo quando viu o Gato de Cheshire, no alto de um galho de árvore.

“O Gato tinha um sorriso agradável; mas ao fita-lo: ‘quantos dentes ele tem!’ Não achas que Alice ficou com um pouco de medo dele?

“Pois sim, um pouquinho. Mas é claro que tu sabes que ele não poderia deixar de ter dentes: e para deixar de sorrir teria de estar de mau humor. De maneira que, tendo tudo em conta, Alice o preferia assim mesmo.”

“Sorrir como um Gato de Cheshire”, entretanto, pode conter uma boa dose de poesia. Hans Haverman, em carta escrita ao principal pesquisador de “Alice”, Martin Gardner, sugere que os desaparecimentos do Gato poderiam derivar das fases lunares. Em seus quatro estágios, a Lua sempre sempre manteve uma associação com os lunáticos e, em seu quarto minguante, em especial, apropria-se da forma de um sorriso antes de sumir dos céus em Lua Nova.

É improvável que consigamos, depois de anos e anos, estabelecer com certeza absoluta a origem desta expressão. Fato é que, ainda hoje, ela desperta muita curiosidade. E as comparações entre os dois gatos continuam sendo inevitáveis.

“Se uma árvore cai em uma floresta, e ninguém está lá, ainda assim haverá algum som?”

O conceito que envolve esta pergunta é exatamente o mesmo que quis provar Schrödinger, i.e., a energia radiativa é completamente aleatória. Para o cientista, cada átomo existe em dois estados simultaneamente, a saber: integrado e desintegrado. No instante em que tomamos a decisão de observar aquela partícula, ela será obrigada a assumir um dos dois estados e não mais de um. Ou seja, o átomo originalmente em dois estados terá de se colapsar. Mas até que observemos o que está se passando, a partícula ainda manterá sua existência em dois universos distintos: o da integração e o da não-integração. Deste modo, o gás venenoso manterá também seus dois estados: contido e liberado; e o gato, por sua vez, permanecerá vivo e morto.

Existem correntes, no entanto, que pensam de um forma mais elaborada: não é a partícula que colapsa quando observada, e sim o seu observador. Ou seja, é o observador que troca de universo quando faz sua observação. O gato, então, poderia continuar vivo mesmo que o gás fosse ativado, só que em outra dimensão. As teorias de Schrödinger revolucionaram a física dos muitos mundos, foi através delas que os cientistas contemporâneos desenvolveram o conceito de Multiverso, ao invés, do Universo. E nesta idéia, não apenas a humanidade, mas todo o nosso cosmo seria apenas um grão de areia. Marcelo Ferroni, em reportagem publicada na revista de ciência “Galileu”, a respeito desta questão, escreve: “Se você já se acostumou com a idéia de que a Terra é um grão de poeira na imensidão do Universo, prepare-se para exigir muito mais da sua humildade.”

David M. Harrison, do Departamento de Física da Universidade de Toronto, no Canadá, nos relata uma passagem divertida em um artigo publicado na internet na página “Upscale”:

“Einstein nunca aceitou a Mecânica Quântica, e esta parte da teoria é uma de suas razões. Ele sintetizou suas objeções dizendo: ‘Deus não joga dados com o universo’. [O físico dinamarquês Niels] Bohr respondeu ‘Pare de dizer a Deus o que fazer!’

“O Deus de Einstein pode não jogar dados, mas existem outras visões de divindade. Por exemplo, no [livro sagrado hindu] Bhagavad-Gîtâ Krishna fala:

“’Eu sou o jogo de dados. Eu sou o eu centrado no coração de todos os seres.’”

A proposição do Gato de Carroll nos transmite um conceito deveras similar. Novamente transcrevendo os apontamentos de Gardner, “há uma passagem no [livro sagrado hebraico] Talmud que fala: ‘Se você não sabe aonde está indo, então qualquer estrada o levará lá.’” Agora, comparando este trecho com o que o Gato e Alice conversam:

“Você poderia me dizer, por favor, que caminho devo seguir para sair daqui?

“Isto depende bastante de onde você quer chegar (...).

“Eu não me importo muito com isso (...).

“Então não importa muito que caminho você irá tomar.”

As semelhanças são realmente intrigantes. E não param por aí. Neste ponto, a loucura do Gato toma aspectos de uma lógica inacreditável. Em seu último comentário a respeito do Gato de Cheshire, o estudioso Martin Gardner indica a existência da Matemática no pensamento de Alice. Ela diz:

“Bem, eu já vi algumas vezes um gato seu um sorriso (...), mas um sorriso sem um gato?! Esta é a coisa mais curiosa que já em toda a minha vida.”

Sobre esta expressão, “um sorriso sem um gato”, o mesmo estudioso nos comenta:

“A frase ‘um sorriso sem um gato’ não é uma má descrição de pura matemática. Embora os teoremas matemáticos possa, algumas vezes ser úteis em aplicações práticas, eles próprios são abstrações que pertencem a uma outra realidade ‘distante das paixões humanas’, como diria Bertrand Russel em um de suas passagens memoráveis, ‘distante inclusive dos fatos pitorescos da Natureza... um cosmos ordenado, onde o pensamento puro pode duelar como em seu lar natural, e onde, ao menos, um dos nossos mais nobres impulsos pode escapar do triste exíguo do mundo atual.’”

A despeito do privilégio e da genialidade do Gato, a própria Alice, em certa altura, afirma: “Um Gato pode olhar para um Rei.” Este é um famoso provérbio. Sua moral é que alguns inferiores, em presença de autoridades ou seus superiores, gozam de certas vantagens.

Em um capítulo mais adiante, Lewis Carroll confronta talvez os dois seres mais poderosos em seu extraordinário mundo: a Rainha de Copas e o Gato de Cheshire. O impasse, na verdade, tem início quando o Reio de Copas pega Alice dialogando com o Gato. Os desacatos do animal irritam profundamente o acovardado Rei, que acaba pedindo providências à Rainha. O resultado é que o Gato é sentenciado à pena máxima: perder a cabeça. O executor, entretanto, nunca havia se deparado com um réu que, de fato, tinha cabeça e o dilema está criado. Esta seqüência nos mostra o quão importante é o bichano na história de Alice. O Gato pode zombar da família real, não pode ser morto e tem poderes sobrenaturais.

No instante em que o executor, o Rei e a Rainha chegam a uma conclusão, o animal torna a desaparecer lentamente deixando apenas sua cabeça e, em seguida, seu sorriso. Essa seria uma clara demonstração de que o Gato de Cheshire é peça-chave na trama. Assim como ele, o Gato de Schrödinger não pode ser morto. Uma vez morto, a experiência não teria efeito.

A bem da verdade, Carroll estabelece, como com todos os demais personagens, um elo entre o real e o imaginário, propondo ligações entre o Gato de Cheshire e Dinah, a verdadeira gata da menina Alice Liddell. Da mesma forma que a pequena Alice Liddell deveria confidenciar seus segredos à gata Dinah, assim o faz a Alice faz-de-conta. Em sua ilustração original, John Tenniel busca sobrepor o Gato aos demais personagens, evidenciando sua condição.







O Gato de Cheshire está, pois, acima do bem e do mal, ele é vida consciência. O imaginário Gato de Schrödinger, por sua vez, é também um conceito de realidade ultra-dimensional, ou ainda, de espírito: ele existe e não existe, vive e morre, etc. Sob um ponto de vista teosófico, esses dois animais são a perfeita definição do conceito de dualidade universal, da polaridade divina, do equilíbrio estático e do equilíbrio dinâmico...



“Questão: quando nós estamos sonhando e, como comumente acontece, temos um ofuscado senso consciente do fato e tentamos acordar, nós não falamos e fazemos coisas que na vida desperta seriam insanas? Nós não poderíamos, então, em determinados casos, definir insanidade como uma inabilidade em distinguir qual é a vida desperta e qual é a vida adormecida? Nós geralmente sonhamos sem a mínima suspeita de irrealidade: ‘Dorme-se seu próprio mundo’, e este mundo é muitas vezes mais parecido com a vida que o outro.”
(carroll, Lewis. Trecho de seu diário em 9 de fevereiro de 1856. In: gardner, Martin. The Annotated Alice – Definitive Edition. W. W. Norton & Company, 2000.)
Fonte(s):
http://www.scarium.com.br/noficcao/victo…

Nenhum comentário: